OFENSA RELIGIOSA NO YOUTUBE: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL JULGA O ÚLTIMO RECURSO NA AÇÃO PROPOSTA POR COMUNIDADE ISLÂMICA
Autor: Victor Terra de Menezes
Revisora: Gabriellen da Silva Xavier do Carmo
Resumo: A Sociedade Beneficente Muçulmana ingressou com uma ação em face da empresa Google Brasil Internet Ltda, pois, no site Youtube, de propriedade da ré, havia conteúdo considerado ofensivo à religião islâmica pelos membros da comunidade. A autora pediu a remoção do conteúdo, identificação dos responsáveis pela publicação e indenização por danos morais. Os pedidos foram negados em 1ª e 2ª instâncias e o Supremo Tribunal Federal julgou em 2019 o último recurso.
Palavras-chave: Islã; Conteúdo Ofensivo; Intolerância Religiosa.
Em abril de 2016, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP) proferiu acórdão importante para a discussão do tema da liberdade religiosa e a possibilidade remoção de conteúdo da internet por ofensa à religião. No caso, a Sociedade Beneficente Muçulmana ingressou com ação indenizatória contra a empresa Google Brasil Internet Ltda. pedindo remoção de conteúdo ofensivo do YouTube, identificação dos responsáveis pela publicação do conteúdo e indenização por danos morais.
Segundo a autora da ação, o site YouTube, de propriedade da ré, hospedava vídeos ofensivos à religião islâmica. Nos vídeos mencionados, a trilha sonora era a mixagem de uma música de funk intitulada “Passinho do Romano” com áudios com dizeres sagrados do Islã.
Na fundamentação da inicial, afirmava que “para os muçulmanos, os dizeres do profeta Muhammad são sagrados e devem ser recitados somente em ocasiões de seriedade e respeito, de modo que mixagens são consideradas blasfêmias, com agravante de ter sido feita com música de estilo e letra de cunho libidinoso”.
Em sua sentença, a juíza Anna Paula Dias da Costa julgou improcedentes os pedidos. Utilizando-se da técnica de ponderação de princípios entre a liberdade religiosa e a liberdade de expressão, a magistrada declarou que não houve ofensa à liberdade de crença e culto, pois não havia nos vídeos qualquer discurso discriminatório ou discurso de ódio contra a religião islâmica.
A Sociedade Beneficente Muçulmana apelou da sentença, alegando, preliminarmente, que o juízo a quo não examinou o pedido de fornecimento de dados dos responsáveis pela publicação do vídeo na internet. No mérito, afirmou que o mero ato de utilizar trechos do Alcorão em canção de cunho obsceno já caracterizaria ofensa à religião islâmica, ainda que não haja ataque direto à religião, e que o grau de ofensividade da crença deve ser determinado pelos praticantes da religião e não de acordo com as convicções daqueles que não a professam. A apelante pediu a remoção dos vídeos do YouTube, a fiscalização pela provedora de hospedagem Google Brasil para que não haja novos vídeos com o mesmo conteúdo na plataforma, e indenização por danos morais.
No acórdão, proferido pela 3ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP, os desembargadores negaram provimento à apelação da autora, mantendo a decisão do juízo de primeiro grau. Segundo o Tribunal, não haveria na letra da música qualquer frase discriminatória ou reveladora de ódio (hate speech) contra os muçulmanos, tampouco qualquer alusão, positiva ou negativa, ao islamismo e seus seguidores. Portanto, não houve abuso de exercício do direito à liberdade criativa e artística que justificasse prevalecer a inviolabilidade da crença religiosa.
Quanto à alegação da apelante de que o conteúdo da canção seria obsceno e libidinoso, a 3ª Câmara afirmou que “a letra é singela e destinada ao mero entretenimento dos fãs do estilo, não fazendo qualquer referência expressa à libidinagem, ao obsceno e ao ilícito” e que do fato de ser “uma canção de ‘funk’, não se pode concluir, como faz a recorrente, tratar-se de um estilo ‘libidinoso’”.
Por fim, o relator do acórdão, o desembargador Viviani Nicolau, asseverou que, ainda que houvesse crítica direta ou ofensa à religião, deveria ser feito um juízo de ponderação de princípios, sopesando a restrição à liberdade de crença e a realização da liberdade de expressão. Segundo o relator, a inviolabilidade de crença religiosa só deveria prevalecer sobre a liberdade de expressão caso a crítica ou ofensa atingisse “a condição de constrangimento ou humilhação dos adeptos de uma crença”.
Desta forma, no entendimento do Tribunal, não ocorreu “desrespeito à liberdade de crença religiosa ou ao sentimento religioso, nem ato que rompe os limites do exercício da liberdade artística”. Não havendo a violação de direito fundamental ou ato ilícito, inexistiria justificativa para a retirada de conteúdo, o fornecimento de registros ou a indenização pedidos.
Após rejeição de embargos de declaração, foi interposto recurso especial, julgado pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em fevereiro de 2019. A recorrente alegava, com base nos artigos 489, §§ 1º e 2º, e 1.022 do CPC/2015, a omissão do acórdão recorrido quanto aos motivos para priorizar a liberdade de expressão em detrimento da proteção da crença religiosa e quanto à justificativa dos critérios gerais da ponderação de princípios, pedindo a decretação de nulidade do acórdão e a realização de novo julgamento ou, subsidiariamente, a reforma do mérito para julgar procedente a ação.
O Tribunal não conheceu do pedido de reforma do mérito, afirmando que a competência para análise de matéria eminentemente constitucional é do Supremo Tribunal Federal. Assim, não caberia ao STJ reexame de mérito acerca da ponderação de normas e princípios constitucionais como a liberdade de expressão artística e a liberdade de religião e crença. Além disso, a recorrente não indicou a violação de nenhuma norma de direito material a embasar a pretensão de reforma. A Corte Superior, porém, conheceu parcialmente o recurso especial quanto ao pedido de decretação da nulidade do acórdão, negando-lhe provimento.
De acordo com o relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, no acórdão recorrido o TJ/SP indicou adequadamente os motivos da decisão em fundamentação clara, precisa e completa, enfrentando todos os argumentos aduzidos pela Sociedade Beneficente Muçulmana capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelos julgadores. Ademais, o acórdão teria “apresentado de forma clara o objeto e os critérios gerais da ponderação de princípios efetuada, mediante a exposição das razões fáticas e jurídicas que fundamentaram a formação do seu convencimento pela prevalência da liberdade de expressão”.
No mesmo ano, o caso chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro Edson Fachin, em decisão monocrática, rejeitou o recurso extraordinário em face do acórdão do TJ/SP, com base na súmula 279 do STF, afirmando que “eventual divergência em relação ao entendimento adotado pelo juízo a quo, tal como posta na lide, demandaria o reexame do conjunto fático-probatório dos autos (a análise da existência ou não de ilicitude); como também a interpretação de texto infraconstitucional (Lei 12.965/2014), configurando, assim, hipótese de contrariedade indireta ou reflexa à Constituição Federal”. Em agravo regimental, a 2ª Turma do STF manteve a decisão, com base nos mesmos fundamentos.
REFERÊNCIAS
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n. 1024271-28.2015.8.26.0100. Ação Indenizatória. Apelante: Sociedade Beneficente Muçulmana. Apelado: Google Brasil Internet Ltda. Relator: Viviani Nicolau. São Paulo, 5 de abril de 2016. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Disponível em: <https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=9351783&cdForo=0>
BRASÍLIA. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.765.579 - SP (2017/0295361-7). Recorrente: Sociedade Beneficente Muçulmana. Recorrido: Google Brasil Internet Ltda. Relator: Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. Brasília, 05 de fevereiro de 2019. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201702953617&dt_publicacao=12/02/2019>
BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo n. 1.196.021 SP. Agravante: Sociedade Beneficente Muçulmana. Agravado: Google Brasil Internet Ltda. Relator: Min. Edson Fachin. Brasília, 06 de setembro de 2019. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=750920626>